Tuesday, December 19, 2006

O dia em que escrevi deus com caixa baixa*

Esta história aconteceu há muito tempo.
Cê não tá entendendo: há muito tempo.
Há tanto tempo que eu não me lembro se foi nessa vida, se é verdade ou ficção.
O certo é que se passou comigo, na minha infância.
Eu estava no colégio, não me lembro ao certo em que série. Lembro de ter mandado uma mensagem ultra-secreta num bilhete para Jiló, meu amigo judeu que estava ficando careca aos onze anos de idade.
Aliás, nunca me lembro se Jiló é com G ou J. Bom, isso não importa.
O importante é que no meio do caminho, Dona Aretha, minha professora de História religiosa, virgem e fundamentalista, interceptou o bilhete. Este comunicava de forma clara e objetiva: “Pelo amor de deus! Esconde isso dentro da calça”!
Diante do meu nervosismo, e do Jiló, vi com meus próprios olhos as faces de Dona Aretha tomarem uma coloração jamais vista, parecia que a mulher ia ter um treco.
Com um esforço sobre-humano, a pobre infeliz balbuciou algumas palavras, com fúria, que contrastavam com aquela voz doce e fina, que estávamos habituados a ouvir. Tais palavras foram:
- Eduardinho, o que significa isso?
Meu deus do céu, pensei eu. O que será de mim agora? Serei expulso. E o pobre do Jiló? Ou será Giló? Não importa. Tá fudido também.
- Eduardinho, eu lhe fiz uma pergunta, insistiu a velha, que tornava-se cada vez mais animalesca e bestial.
Sem saber o que falar, vomitei as palavras, sem ter tido tempo de pensar:
- Não é o que a senhora está pensando.
- Como não?, rebateu ela. Está muito claro para mim. Trata-se de uma heresia, uma aberração, uma afronta ao Criador Todo-Poderoso, à moral, à tradição e aos bons costumes.
Sem entender nada, perguntei com a maior ingenuidade do mundo:
- Do que a senhora está falando?
Aquilo foi recebido como uma ofensa pessoal e um, digamos, desacato à autoridade.
Sem poder questionar o que de fato estava acontecendo, fui imediatamente encaminhado a Diretoria, onde conversei também com uma inspetora, metida à psicóloga. Lá descobri que todo esse auê ocorrera porque minha querida professora ofendera-se com uma simples palavra escrita em letra minúscula.
Para mim, era uma simples palavra.
Escrever deus com caixa baixa era tão normal quanto escrever Brasil ou brasil, Eduardo ou eduardo. Mas é claro que, para não me complicar, guardei este pensamento comigo.
Acabaram me liberando e naquele dia, na volta para casa, fui pensando no quão curioso havia sido tudo aquilo.
A puta da professora ficou tão incomodada com deus minúsculo, coisa que não diminui o valor do criador, que nem se preocupou com o que Jiló, ou será Giló, deveria guardar nas calças.
Aquilo sim era uma heresia.

* Texto escrito em 21/11/04.

2 Comments:

Blogger Unknown said...

Acho que já li esse texto umas 6 vezes e todas as vezes fico imaginando a carinha do Eduardinho rs, pensando se Giló ou Jiló? Dou risada sozinha.
Adorooo.
Um dos meus textos preferidos.

6:12 AM

 
Blogger Unknown said...

This comment has been removed by the author.

6:13 AM

 

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