Friday, December 08, 2006

A vingança da sopa de jiló


Não era questão de não gostar. Era ódio mortal mesmo. Não era frescura, era aversão. Junior não suportava aquela gororoba verde e nojenta. E a megera da sua vó ignorava totalmente a ojeriza do neto. Obrigava a pobre criança a, todos os dias impreterivelmente, engolir aquela sopa indigesta. Depois não sabe por que tantas crianças saudáveis e felizes crescem e se transformam em adultos tristes e problemáticos. Sim, porque a sopa de jiló é um trauma de infância de muito marmanjo por aí. É responsável por crises existenciais, broxadas homéricas, brigas no trânsito e, até mesmo, guerras mundiais. Tenho certeza que a mãe do Bush o obrigava a tomar sopa de jiló. Bom, deixemos os devaneios de lado e voltemos à sopa. A verdade é que a revolta de Junior era tanta que, um belo dia, ele resolveu se vingar. Não tinha nada contra sua vó, especificamente, mas teria que dar a ela uma lição, que servisse de exemplo a todas as vós do mundo, que torturam seus netos diariamente. O mesmo que acontecera a Tiradentes, levado à forca por seus atos. E olha que ele nem havia obrigado alguém a tomar sopa de jiló. Acontece que o que Junior faria era muito mais que uma vingança pessoal. Era uma revolução contra o sistema, pensava ele, uma afronta a esta tradição idiota de que criança precisa tomar sopa de jiló. Eis o plano de Junior: quando sua vó se distraísse por alguns segundos, ele “batizaria” a sopa com um composto químico que preparara. Junior era um pequeno cientista, inspirado nesses malucos que a gente vê nos filmes B e que sempre têm um ajudante corcunda chamado Igor, que fica balbuciando palavras indecifráveis. Igor, quer dizer, Junior havia ganhado no Dia das Crianças do ano passado um pequeno laboratório, destes vendidos em lojas de brinquedos e que trazem dentro da caixa todo tipo de tubos de ensaio, microscópios e soluções químicas das mais variadas cores e odores. Junior adorava as aulas de Ciências do colégio. De repente, sua vó abre a geladeira para pegar a dentadura. Dá pra acreditar que a velha escrota guardava a dentadura dentro de um copo d´água dentro da geladeira? Pra ficar mais fresquinha, dizia a ditadora, com seu cabelo branco e seus óculos fundo de garrafa. O corpo robusto da coroa cobria praticamente toda a visão da parte interna da geladeira, mas por uma pequena fresta, Junior conseguiu ver um pote de danoninho. Desejoso, ele passa a língua nos lábios e pensa: logo, você vai ser todinho meu, meu amiguinho. E dá continuidade ao seu plano maquiavélico e diabólico. Enquanto sua vó encaixa aquela prótese malfeita, deixando um fio de baba escorrer pelo canto da boca, ele rapidamente despeja no prato de sopa todo o conteúdo de um frasco todo preto, com uma caveira branca e dois ossos humanos cruzados, pintados na superfície do recipiente. Subitamente, o líquido dentro do prato começa a fervilhar, bolhas vão surgindo e a sopa vai crescendo sem parar. “Vovó, tem uma mosca na minha sopa”, grita desesperadamente, ao mesmo tempo em que abre um sorriso cínico. A vó vem em sua direção, resmungando sei lá o quê, e quando ela ajeita os óculos no nariz gordo e inclina um pouco o corpo obeso sobre a mesa para ver de perto, acontece o inacreditável, o insólito, o inimaginável. A sopa, devido às reações químicas, tomara uma forma grotesca, meio monstro, meio jiló. Não era possível distinguir com precisão suas formas, o que era braço, o que eram olhos, mas a sua boca enfurecida com dentes afiados estava ali, bem nítida. A criatura pula do prato e, em questão de segundos, engole a velha, como uma jibóia engole um boi. No caso, uma vaca. O monstro-sopa volta para o prato. Um arroto estrondoso ressoa por toda a vizinhança, cuspindo para o alto a única lembrança da megera: sua dentadura. Junior, indiferente àquela cena surreal, caminha até a geladeira, abre a porta e, calmamente, pega seu objeto de desejo. Ele tira a tampa metálica do danoninho, dá uma lambida, faz cara de nojo, como se estivesse enjoado, cospe no chão e diz para si mesmo:
- Pensando bem, a sopa de jiló não era tão ruim assim.

*Eduardo Spinelli é redator, roteirista, fã de filmes trash e nunca tomou sopa de jiló na vida.

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